Maputo, Junho de 2025 — O antigo Presidente do Conselho Constitucional, Dr. Hermenegildo Gamito, rompeu o silêncio em entrevista recente, onde abordou temas sensíveis da política moçambicana, incluindo o papel do Conselho Constitucional, a legalidade das reformas, a inclusão política, a corrupção institucional e o estado da democracia no país.
Conselho Constitucional devia ser Tribunal Constitucional
Segundo revelou, o actual Conselho Constitucional (CC) foi concebido, até poucas horas antes da aprovação da Constituição de 2004, para funcionar como Tribunal Constitucional. “Era para ter sido tribunal. Até 24 horas antes da aprovação da Constituição, a proposta era Tribunal Constitucional”, afirmou Dr. Gamito, acrescentando que a alteração da designação “não foi por razões científicas, infelizmente”.
Para o jurista, a mudança retirou ao órgão o seu estatuto formal acima do Tribunal Supremo. “Se fosse Tribunal Constitucional, estaria acima do Supremo. Mas mesmo sendo Conselho, tem competências de tribunal”, clarificou, reforçando: “Quem ler correctamente, tecnicamente e juridicamente, verá que o Conselho julga, e julgamento é coisa de tribunal”.
Revisão Constitucional de 2018 criticada
Dr. Gamito critica abertamente a revisão constitucional de 2018, considerando que ela trouxe consequências negativas. “As constituições não são perenes nem vitalícias, mas são a lei das leis e não se deve mexer nelas de forma precipitada”, advertiu. O antigo Presidente do Conselho Constitucional recorda que a Constituição “é a cabeça de todos os capítulos de todas as disciplinas jurídicas” e lamenta que a reforma tenha sido conduzida de forma imprudente.
Eleição Distrital de 2024: “Atropelo à Constituição”
A não realização das eleições distritais em 2024 foi considerada por Dr. Gamito como “um claro atropelo à Constituição”. Sem rodeios, afirmou: “Não tenho a menor dúvida. A Constituição está acima de todos nós. O Presidente da República jura cumpri-la”. O jurista deixou clara a sua reprovação face ao adiamento das eleições distritais inicialmente previstas na revisão constitucional anterior.
“As eleições em Moçambique não são livres nem justas”
De forma categórica, o antigo dirigente do Conselho Constitucional declarou:
“Não. Não. Não. Completamente não. A minha posição pessoal é que não há eleições livres, justas e transparentes em Moçambique.”Estas palavras surgem num contexto em que aumentam as denúncias sobre manipulação eleitoral, partidarização de órgãos eleitorais e falta de confiança nas instituições que gerem os processos eleitorais.
Exclusão política alimenta ciclos de conflito
Para Dr. Gamito, a exclusão política é uma das causas dos conflitos cíclicos no país. “Quando chega o momento da eleição, há uma tensão nervosa grande pela mudança”, constatou. Defende que “os órgãos não podem estar demasiado partidarizados” e que o Governo deve ser “a expressão da vontade da maioria, mas sem excluir a minoria”.
O jurista advoga pela alternância democrática real: “Se optámos pelo modelo democrático, isso implica alternância do poder. Quem tiver maioria governa, mas sem faltar ao respeito à minoria.” Na sua opinião, “no dia em que Moçambique fizer inclusão real, deixará de enfrentar conflitos políticos recorrentes”.
Corrupção: “Não é preciso grandes matemáticas”
A corrupção endémica também mereceu destaque na entrevista. Dr. Gamito apontou a manifestação exterior de riqueza como sintoma visível da corrupção que “abala os alicerces do Estado”. Lamenta que alguns dirigentes acumulem património incompatível com os seus salários:
“Como é que alguém entra para uma função pública com salário X e, em pouco tempo, tem prédios na avenida principal de Maputo?”
Para ele, a solução é simples: “Aplicação da lei, com firmeza. Ninguém pode estar acima da lei.”
Renúncia em 2019: “Não foi drama nem trauma”
Dr. Gamito explicou pela primeira vez publicamente as razões que o levaram a renunciar ao cargo de Presidente do Conselho Constitucional em 2019. Afirmou que não saiu por conflitos pessoais, mas por convicções institucionais: “A Assembleia da República violou a Constituição ao tentar indicar um juiz. Eu não tinha nada a ver com aquilo, mas como Presidente do CC, não podia pactuar com a ilegalidade”.
Recorda que, durante um diálogo tenso no elevador da Presidência da República, lhe foi dito: “Vocês só querem um juiz da RENAMO”. Ao que respondeu:
“O meu querer está na Constituição. Eu não tenho querer pessoal.”Segundo Gamito, foi nesse instante que decidiu abandonar o cargo: “Para quem me conhece, não foi naquele minuto que decidi. Foi naquele segundo”.
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